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Se as valas comuns eram uma farsa, por que o Papa está pedindo desculpas no Canadá?

Papa Francisco no Canadá

PATRICK T. FALLON | AFP

Francisco Vêneto - publicado em 26/07/22

Estudo publicado em janeiro deste ano desmascarou a narrativa de que "centenas de crianças" teriam sido mortas e enterradas como indigentes em internatos católicos para indígenas

Onde estão os alegados “restos mortais” de “centenas de crianças indígenas” que teriam sido “sepultadas de modo anônimo em escolas católicas do Canadá”?

Quem quer saber é o historiador Jacques Rouillard, professor emérito na Faculdade de História da Universidade de Montreal. Em 11 de janeiro de 2022, ele publicou no portal canadense DorchesterReview.ca um texto retumbante no qual afirma que “nenhum corpo” de criança foi encontrado em supostas “valas comuns”, “sepulturas clandestinas” ou em qualquer outra forma de “sepultamento irregular” na Escola Residencial Indígena Kamloops, que seria o epicentro de uma clamorosa narrativa anticatólica massivamente divulgada em 2021 como um escândalo de proporções planetárias.

O historiador fez questão de desmascarar também o mais grave aspecto dessas bombásticas manchetes: o de que, antes de serem sepultadas clandestinamente como indigentes ou quase como “lixo”, as supostas “centenas de crianças” ainda teriam sido nada menos que assassinadas sob responsabilidade da Igreja. Rouillard é contundente: não foram achados nem sequer indícios de que alguma delas tenha sido morta propositalmente.

De acordo com o levantamento apresentado por Rouillard, 51 crianças morreram naquele internato ao longo dos 49 anos transcorridos entre 1915 e 1964. No caso de 35 delas, foram encontrados documentos que comprovam que a causa da morte, para a grande maioria, foram doenças, e, em alguns casos, acidentes. Nenhuma das 51 crianças falecidas foi assassinada.

Como a narrativa se espalhou

Ao longo de 2021, porém, teve ampla divulgação na grande mídia canadense, com repercussão mundial, a alegada descoberta de “sepulturas sem identificação” em “várias escolas residenciais indígenas” do país. Transportadas imediatamente para as redes sociais, estas alegações se transformaram em narrativas diversas, algumas das quais afirmavam que “centenas de crianças” haviam “sido mortas” e “enterradas secretamente” em “valas comuns” ou em “túmulos irregulares” dentro dos terrenos de “escolas católicas” espalhadas “por todo o Canadá”.

De fato, diversas escolas residenciais indígenas, embora pertencessem ao governo canadense, tiveram sua gestão confiada a congregações religiosas, a maioria das quais eram católicas. Por esta razão, a Igreja foi rapidamente acusada de “conivência ou omissão” diante de “abusos e atos de violência, física e psicológica”, infligidos às crianças nativas naquelas instituições, que haviam sido implantadas pelo governo do país para, em tese, “integrar crianças nativas” à sociedade canadense. O modelo governamental de suposta “integração”, porém, foi acusado de forçar as crianças a se distanciarem bruscamente da sua cultura, tradições e idiomas. Como não foi possível sustentar a narrativa de que “centenas de crianças” tinham “sido mortas” em “escolas católicas”, a mídia passou a enfatizar a indignação social causada não pelas mortes em si, mas pela maneira como as crianças eram separadas da família tanto em vida quanto no próprio sepultamento.

Até mesmo a China, cujo governo comunista perpetra explicitamente abusos sistemáticos e fartamente comprovados contra os direitos humanos dos próprios cidadãos, teve o desplante de exigir no Tribunal de Direitos Humanos da ONU, em junho de 2021, uma investigação sobre as “violações aos direitos humanos da população indígena do Canadá”. A Anistia Internacional, organização que defende abertamente o assassinato de bebês em gestação por meio do aborto livre, também exigiu que os responsáveis ​​pelos “restos mortais” que “foram encontrados” em Kamloops fossem processados.

Mas Jacques Rouillard questiona sem panos quentes e indo direto ao ponto-chave: onde é que estão estes alegados “restos mortais”?

Os supostos “restos mortais”

Segundo o extenso e detalhado artigo do pesquisador, a suposta “descoberta” de mais de “200 corpos” de crianças “mortas em escolas católicas” se baseou numa varredura de solo, feita por radar, em busca de corpos de crianças que já se pressupunha que tivessem sido anonimamente sepultadas em terreno pertencente à escola residencial indígena de Kamloops. Um relatório preliminar não encontrou corpo algum, mas sim rupturas do solo num pomar de macieiras das proximidades. Nenhum “resto mortal” chegou a ser exumado, mas a líder indígena canadense Rosanne Casimir afirmou que, “de acordo com o ‘conhecimento’ da comunidade”, aquelas anomalias do solo “eram 215 crianças desaparecidas”, incluindo algumas de apenas 3 anos de idade.

Rouillard prossegue a exposição das suas investigações afirmando que, com base naquelas anomalias do solo, a jovem antropóloga Sarah Beaulieu, que havia supervisionado as assim descritas “varreduras”, teorizou que “provavelmente” havia 200 “possíveis sepultamentos” no local. Somente uma escavação, no entanto, poderia apresentar evidências – mas nenhuma escavação foi feita, nem na época, nem até hoje (!)

Desproporcionalidade das reações

As desvirtuações de informação provocaram uma série de violentos ataques incendiários contra igrejas católicas no país.

Mesmo com a responsabilidade final pelas escolas e pela sua metodologia cabendo ao governo canadense, os bispos católicos do Canadá fizeram publicamente um pedido de desculpas pelas graves falhas cometidas por membros da Igreja na gestão daqueles internatos – porque, afinal, embora não tenham matado ninguém nem feito sepultamentos clandestinos, os gestores daquelas escolas certamente erraram na forma de lidar com a separação das crianças de suas famílias e da sua cultura e, principalmente, cometeram os mesmos abusos “disciplinares” que costumavam ser cometidos na quase totalidade dos internatos da época, fossem católicos ou não, fossem canadenses ou não.

Além das palavras, a Igreja também assumiu compromissos concretos com as comunidades nativas canadenses. Segundo o Vatican News, foram disponibilizados 30 milhões de dólares, em todo o Canadá, durante cinco anos, para financiar programas a serem definidos conjuntamente entre as lideranças indígenas e as dioceses, paróquias e órgãos da Igreja no país. Dom Donald Bolen, arcebispo de Regina, disse que seria “um longo caminho” e que era “importante percorrê-lo: precisamos continuar com ações concretas por justiça e reconciliação”.

Representantes das comunidades indígenas canadenses manifestaram à Santa Sé o desejo de um encontro pessoal com o Papa, exigindo diretamente dele um pedido de desculpas. O Papa Francisco se declarou disposto a aceitar. Em 27 de outubro de 2021, o boletim diário da Santa Sé informou que “a Conferência Episcopal do Canadá convidou o Santo Padre a fazer uma viagem apostólica ao Canadá, também no contexto do longo processo pastoral de reconciliação com os povos indígenas. Sua Santidade indicou a sua disponibilidade para visitar o país, numa data a combinar”.

Esta é a viagem que está sendo realizada pelo Papa Francisco nesta última semana de julho.

Enquanto isso, em contraposição à postura de responsabilização e reconciliação que a Igreja Católica apresentou desde o início das supostas “descobertas”, manifestantes radicais anticatólicos reagiram com estúpida e criminosa violência no Canadá, promovendo uma onda de ataques contra igrejas e, com isso, dando uma mostra do que seria na realidade o seu hipocritamente alegado “desejo de paz e reconciliação”.

Reviravolta

A reviravolta provocada pela extensa matéria de Jacques Rouillard começou a repercutir, ainda em janeiro, em outros veículos da América do Norte, que, finalmente, questionaram as anteriores narrativas e suas intenções.

O “The Spectator World” se perguntou: “Por que o governo canadense não esperou por provas antes de lançar o país numa espiral de fúria e violência anticristã?”.

O “National Post” reforçou a proposta do próprio Jacques Rouillard de exortar todos os canadenses a se questionarem se, “no caminho para a reconciliação, não seria melhor procurar e contar a verdade completa em vez de criar deliberadamente mitos sensacionalistas”.

O “The Daily Wire“, em matéria cujo título dizia que “a narrativa pode estar colapsando”, recordou que, na época das alegadas “descobertas”, o primeiro-ministro canadense Justin Trudeau declarou categoricamente que “restos mortais foram achados na antiga escola residencial Kamloops” e que tal achado “partia seu coração”, porque, segundo ele, “é uma dolorosa lembrança daquele capítulo escuro e vergonhoso da história do nosso país”.

O fato verdadeiro é que história real e completa ainda precisa – literalmente – ser escavada e exposta ao mundo.

O pedido de perdão do Papa Francisco

Mas se as valas comuns e seus apêndices narrativos eram uma grande farsa, por que o Papa Francisco está agora pedindo desculpas no Canadá?

O Papa e a Igreja não podem nem devem pedir desculpas por “valas comuns” ou por “centenas de crianças assassinadas” porque nada disso é verdade. As desculpas que o Papa Francisco está pedindo em nome da Igreja Católica dizem respeito, segundo as suas próprias palavras, às “formas em que muitos cristãos, infelizmente, apoiaram a mentalidade colonizadora das potências que oprimiram os povos indígenas”.

Francisco fez o seu primeiro discurso durante a “peregrinação penitencial” às terras canadenses nesta segunda-feira, 25, no encontro com povos indígenas em Maskwacis, a cerca de 70 km da cidade de Edmonton, na província de Alberta. No discurso, ele afirmou:

“Quero iniciar daqui, deste lugar tristemente evocativo, o que pretendo fazer: uma peregrinação penitencial. Chego às vossas terras nativas para vos expressar, pessoalmente, o meu pesar, implorar de Deus perdão, cura e reconciliação, manifestar-vos a minha proximidade, rezar convosco e por vós”.

O Papa recordou os encontros previamente realizados em Roma, cerca de 4 meses atrás:

“Naquela altura, foram-me entregues dois pares de mocassins, sinal das tribulações sofridas pelas crianças indígenas, particularmente por aquelas que, infelizmente, não mais regressaram das escolas residenciais para suas casas. Pediram-me para restituir os mocassins quando chegasse ao Canadá; farei isto no final destas palavras, inspiradas precisamente neste símbolo, que foi reavivando em mim, nos meses passados, o pesar, a indignação e a vergonha. A recordação daqueles meninos infunde consternação e incita a agir para que toda criança seja tratada com amor, veneração e respeito. Mas estes mocassins nos falam também de um caminho, de um percurso que desejamos fazer juntos. Caminhar juntos, rezar juntos, trabalhar juntos, para que os sofrimentos do passado deem lugar a um futuro de justiça, cura e reconciliação”.

Francisco evocou então a longa trajetória dos povos indígenas e dos seus estilos de vida antes da colonização. E acrescentou:

“Repenso o drama sofrido por muitos de vós, pelas vossas famílias, pelas vossas comunidades; repenso o que partilhastes comigo sobre as tribulações sofridas nas escolas residenciais. Mas é justo fazer memória, porque o esquecimento leva à indiferença e, como já foi dito, ‘o contrário do amor não é o ódio, é a indiferença; o contrário da vida não é a morte, mas a indiferença face à vida ou à morte’. Fazer memória das experiências devastadoras que aconteceram nas escolas residenciais impressiona, indigna e entristece, mas é necessário”.

Mas a quais experiências o Papa se refere?

No tocante especificamente aos internatos governamentais confiados às comunidades católica e protestante, é um fato documentado que neles se praticavam os abusos tristemente comuns a muitos outros internatos semelhantes, como castigos físicos, trabalho estudantil, rígidos períodos de separação e restrições de comunicação entre as crianças e suas famílias, rigor disciplinar desproporcional e desprezo pelas culturas indígenas, substituídas forçosamente pela cultura europeia imposta pelo próprio governo do Canadá. O cenário disciplinar não era muito diferente do que ocorria em escolas de elite de Oxford ou Cambridge, e vem ao caso recordar que nos internatos do País de Gales ou da Escócia tampouco se estudava em galês ou escocês, mas obrigatoriamente em inglês.

O que tornou o caso dos internatos canadenses particularmente candente foi a discriminação explícita contra a cultura indígena, um fato que contribuiu para corroborar o contexto mais amplo de discriminação característico do processo colonizador como um todo. Mais grave ainda, porém, foi a separação forçada das crianças de suas famílias e culturas.

O Papa Francisco prosseguiu em seu discurso:

“É necessário recordar como as políticas de assimilação e alforria, que incluíam o sistema das escolas residenciais, foram devastadoras para as pessoas destas terras. Quando os colonizadores europeus chegaram aqui pela primeira vez, eles se depararam com a grande oportunidade de desenvolver um encontro fecundo entre culturas, tradições e espiritualidades. Mas isso, em grande parte, não aconteceu. E voltam-me à mente os vossos relatos: de como as políticas de assimilação acabaram por marginalizar sistematicamente os povos indígenas; de como as vossas línguas e culturas, também através do sistema das escolas residenciais, foram denegridas e suprimidas; de como as crianças foram submetidas a abusos físicos e verbais, psicológicos e espirituais; de como foram levadas de suas casas quando eram pequeninas e de como isso afetou indelevelmente a relação entre os pais e os filhos, os avós e os netos”.

Do perdão à reconciliação

Agradecendo às comunidades indígenas canadenses por lhe terem “mostrado os fardos pesados que carregais no vosso íntimo, por terdes partilhado comigo esta memória sangrenta”, o Papa abordou a motivação da sua visita ao Canadá:

“Estou aqui porque o primeiro passo desta peregrinação penitencial no meio de vós é o de vos renovar o pedido de perdão e dizer com todo o coração que o deploro profundamente. Peço perdão pelas formas em que muitos cristãos, infelizmente, apoiaram a mentalidade colonizadora das potências que oprimiram os povos indígenas.

Sinto pesar. Peço perdão, em particular pelas formas em que muitos membros da Igreja e das comunidades religiosas cooperaram, inclusive através da indiferença, naqueles projetos de destruição cultural e assimilação forçada dos governos de então, que culminaram no sistema das escolas residenciais”.

O Papa ponderou:

“Embora estivesse presente a caridade cristã e tivesse havido não poucos casos exemplares de dedicação às crianças, as consequências globais das políticas ligadas às escolas residenciais foram catastróficas. A fé cristã nos diz que se tratou de um erro devastador, incompatível com o Evangelho de Jesus Cristo. Perante este mal que indigna, a Igreja se ajoelha diante de Deus e implora o perdão para os pecados dos seus filhos. Desejo reiterá-lo claramente e com vergonha: peço humildemente perdão pelo mal cometido por tantos cristãos contra as populações indígenas”.

Francisco enfatizou que o pedido de perdão é “apenas o primeiro passo, o ponto de partida”. E completou:

“Parte importante deste processo é efetuar uma busca séria da verdade sobre o passado e ajudar os sobreviventes das escolas residenciais a empreenderem percursos de cura dos traumas sofridos”.

O Papa acrescentou, falando das expectativas para o futuro:

“Continuarei a encorajar o compromisso de todos os católicos em favor dos povos indígenas. Já o fiz noutras ocasiões e em vários lugares, por meio de encontros, apelos e mesmo através duma Exortação Apostólica. Sei que tudo isto requer tempo e paciência: trata-se de processos que devem penetrar nos corações, e a minha presença aqui e o compromisso dos bispos canadenses dão testemunho da vontade de avançar por este caminho.

Deixemos que o silêncio nos ajude, a todos, a interiorizar o pesar. Silêncio. E oração: frente ao mal, rezamos ao Senhor do bem; frente à morte, rezamos ao Deus da vida. De um túmulo, termo último da esperança perante o qual se desvaneceram todos os sonhos ficando apenas pranto, pesar e resignação, o Senhor Jesus Cristo fez o lugar do renascimento, da ressurreição, de onde partiu uma história de vida nova e reconciliação universal. Não bastam os nossos esforços para curar e reconciliar, é precisa a sua graça: precisamos da sabedoria serena e forte do Espírito, da ternura do Consolador. Seja Ele a preencher as expetativas dos corações. Seja Ele a tomar-nos pela mão. Seja Ele a fazer-nos caminhar juntos”.

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